sexta-feira, 17 de junho de 2011

Todo crente é de certo modo um ateu


Bom dia Senhor


Todo crente é de certo modo um ateu, pois a afirmação da sua crença implica quase sempre a negação de outras crenças e deuses; mais claramente: para ser cristão, é preciso negar ou ignorar o islã, o judaísmo, o budismo, o hinduísmo, a umbanda, o panteísmo, o zoroastrismo, etc. e vice-versa. Ou seja, para acreditar em Javé, por exemplo, é preciso desacreditar outros deuses com a mesma autoridade ou dignidade: Zeus, Apolo, Amon, Crom, Thor, Odin, Baal, Alá, Shiva, Bhrama, Vishnu, Ogum, Jaci e outros tantos. Por isso, o "meu Deus" e a "minha religião" excluem, necessariamente, a crença, o deus e a religião dos outros, pois só a "minha fé" e o "meu Deus" são verdadeiros, tudo mais é falso. Afinal, a crença, a religião e o deus dos outros não passam de superstições, crendices, coisas diabólicas, etc.
Dizer que só existe um deus, o "meu Deus", é tão insensato quanto dizer que só existe um idioma, o "meu idioma", um país, o "meu país" etc., como se só "eu" existisse.

Somos cristãos pelas mesmas razões que somos brasileiros e não franceses ou italianos e, pois, falamos português e não francês ou italiano: somos herdeiros da colonização e toda tradição de lutas, conquistas e violências que nos precedeu, isto é, uma história de extermínio de povos, culturas, mitos, línguas, religiões e deuses. Trata-se portanto de algo acidental: se fossemos colonizados pelos chineses, seríamos budistas e falaríamos chinês ou mandarim. Se fossemos colonizados pelos árabes, seríamos muçulmanos e falaríamos árabe. O deus ou deuses de hoje são as mitologias e as fábulas de amanhã. Toda doutrina, política, moral ou religiosa que pressupõe ou propõe unidade é falsa, tirânica, má e contrária à natureza e à vida, pois a vida, e tudo a que se refere, é múltipla, plural, diversa e em permanente mutação. É preciso presunção, ingenuidade e intolerância para crer assim.

Em geral toda forma de violência tem algum bom pretexto ou uma bela e sonora metáfora. Em nome de Deus, por exemplo, foram cometidas as mais terríveis violências: a noite de São Bartolomeu, o extermínio dos cátaros (ou albigenses), as cruzadas, a inquisição, os massacres patrocinados por Moisés (Êxodo, 32: 27 e 28) ou Josué (6:21) e seus atuais seguidores: Bin Laden, Bush, entre outros.

O cristianismo (o islã, etc.) depende do pecado e do pecador tal qual os presídios, de presos, os cemitérios, de cadáveres, os senhores, de escravos. O cristianismo (re) inventou o pecador (e o pecado) não para libertá-lo, mas para escravizá-lo (a expressão "servo de deus" não existe por acaso) e manipulá-lo; enfraquecê-lo, portanto e pretende ser a cura de uma doença por ele criada: o pecado.

Se cães e gatos pudessem representar seus deuses, certamente os representariam na forma de cães e gatos, e com variações: um pastor na forma de um pastor etc. (Xenófanes revisto). Também assim são os homens, que criam seus deuses à sua imagem e semelhança, os quais variam no tempo e no espaço, inevitavelmente.

De acordo com um crente, todos, à exceção daqueles que compartilham de sua fé, estão no pecado e vão para o inferno ou algo assim. Há hoje tantas denominações (algumas autênticas empresas comerciais) e doutrinas tão díspares e contraditórias que já não temos certeza se o cristianismo é uma religião monoteísta e se ainda se venera o Cristo ou o Dinheiro.

Se Deus fosse julgado por um tribunal isento, seria fácil acusá-lo e difícil absolvê-lo, porque, ou bem seria condenado por omissão: deixar que toda sorte de injustiças, crimes e desastres aconteçam sem nada fazer, embora pudesse fazê-lo e evitá-lo. Ou bem seria condenação por ação: se Ele é onipotente, onipresente e onisciente, que tudo sabe, tudo pode e tudo vê, então todas as violências e crimes são obra sua, e os homens são apenas joguetes ou instrumentos de sua obra, boa ou má. Afinal, os homens atuariam segundo a sua calculada programação, tal qual a morte de seu próprio filho: um homicídio doloso e premeditado;

Erros, decepções, traições, doenças e mortes, por mais que nos causem dor e sofrimento, são inevitáveis e são, pois, a própria vida. Tal qual os animais e plantas, nascemos, crescemos, adoecemos e morremos inevitavelmente. Como os frutos de uma árvore, que precisam amadurecer, cair, apodrecer e soltar suas sementes para que outras árvores e frutos germinem e frutifiquem, assim também são os homens. Nascemos para a morte e morremos para a vida (Heráclito). Convém, por isso, enfrentar a vida, e tudo de bom e ruim que ela implica, com dignidade, galhardia e humor inclusive.

Um Deus que quisesse ser adorado e não apenas temido jamais nos tentaria ou corromperia com promessas ou prêmios (céu, vida eterna etc.) nem nos chantagearia com ameaças de morte, inferno etc. Nem tampouco incentivaria a subserviência, e, pois, a dissimulação, nem condenaria a crítica e a rebeldia necessárias. Um Deus assim não precisaria de servos.

Eu só acreditaria num Deus que não fosse tirânico, ciumento, mesquinho, injusto, cruel, vingativo, misógino, homofóbico e racista. Eu só acreditaria num Deus que fosse grande e justo e maduro e sábio o bastante para saber amar as pessoas como elas realmente são e não como Ele gostaria que elas fossem. Eu só acreditaria num Deus capaz de perceber o que há de grande e pequeno e divino em cada um de nós para além de todo preconceito. Um Deus, enfim, que tratasse judeus e palestinos, crentes e ateus, homens e mulheres, hetero- e homossexuais, prostituas e criminosos com a mesma dignidade, com o mesmo respeito. Afinal, ainda que tenhamos o dom de profetizar e conheçamos todos os mistérios e toda a ciência, ainda que tenhamos tamanha fé, a ponto de transportar os mostres, se não tivéssemos amor, nada seremos (Coríntios 1: 13);

A distinção entre os atos bons e maus, entre os atos de deus e do demônio, e, portanto, a distinção entre deuses e demônios, não preexiste à interpretação, mas é dela resultado.
Jesus tinha razão: o reino de Deus - e também do demônio, pois são o verso e reverso de uma mesma moeda, tal qual alto e baixo, direita e esquerda, bem e mal, motivo pelo qual um não existe sem o outro - está dentro de nós (Lucas, 17:21). Para Nietzsche também não existem fenômenos religiosos, mas apenas uma interpretação religiosa dos fenômenos! (Via Paulo Queiroz).

Por Josef Anton Daubmeier

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