Essa é a última palavra sobre Judas Iscariotes: ele não traiu Jesus. Não é, necessariamente, a verdadeira. Nem a mais correta. Mas é a última versão da história mais polêmica do cristianismo. A revelação faz parte de um manuscrito redigido há cerca de 1,7 mil anos e que passou a maior parte desse tempo perdido em uma caverna no deserto egípcio. Escrito em copta, o idioma usado na redação de manuscritos no Egito antigo, o texto não deixa qualquer dúvida sobre os segredos que promete revelar. Na linha que abre a primeira das 13 folhas encontradas está grafado em destaque: Evangelho de Judas.
A tradução do manuscrito foi apresentada em abril, após 5 anos de trabalho. Autenticação, restauração e decodificação foram feitas pela Fundação Mecenas, da Suíça, e bancadas pela National Geographic Society. O resultado deixou historiadores e arqueólogos eufóricos. Afinal, descobertas como essa são raras e têm poucos precedentes – em termos de valor histórico, o evangelho pode ser comparado ao encontro dos Pergaminhos do Mar Morto, em 1947, que nos trouxe a mais antiga Bíblia conhecida, ou dos Manuscritos de Nag Hammadi, em 1948, que revelou ao mundo a existência dos evangelhos apócrifos. Juntos, todos esses textos estão permitindo que pesquisadores reconstruam a história do nascimento da religião que mais tem fiéis no mundo. “Por 2 mil anos, acreditamos que as únicas fontes sobre a vida de Jesus eram os 4 evangelhos canônicos: Mateus, Marcos, Lucas e João. Mas, nos últimos 50 anos, vimos que eles são apenas um pequeno exemplo entre vários textos que foram escritos nos primeiros séculos após a crucificação”, diz Elaine Pagels, professora de religião na Universidade de Princeton.
Não que o Evangelho de Judas fosse exatamente um desconhecido. Estudiosos da religião já sabiam de sua existência por causa de uma carta escrita em 178 d.C. pelo então bispo de Lyon, santo Irineu – o homem que decidiu que apenas os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João entrariam na Bíblia. Em seu texto, Irineu citava nominalmente o Evangelho de Judas em meio a outros textos que o desagradavam pelo conteúdo “herético”.
O manuscrito recém-traduzido afirma que o único apóstolo a entender todo o significado dos ensinamentos de Jesus foi Judas. Ele mesmo, o homem cujo boneco é espancado anualmente na Páscoa brasileira. Cujo uso do nome é proibido na Alemanha. O sinônimo definitivo de traição. E, goste ou não, a última chance de rever esse estigma sobre o apóstolo é o evangelho. “Desconhecemos a existência de qualquer outro documento que relate a vida de Judas”, afirma Stephen Emmel, professor de estudos coptas da Universidade de Münster, na Alemanha, e um dos primeiros estudiosos a entrar em contato com o manuscrito. Estamos, portanto, diante da última palavra sobre Judas Iscariotes.
Quem foi Judas?
Judas é um personagem sem história. Com exceção de 15 citações nos evangelhos canônicos e algumas outras no Atos dos Apóstolos, quase não há registros de seu passado antes de conhecer Jesus. Ao contrário de apóstolos como Pedro, que era pescador, ou do cobrador de impostos Mateus, a Bíblia não conta de onde ele veio ou como ganhava a vida. Um silêncio que não chega a surpreender. “Pouco se sabe sobre Judas porque os evangelhos não tinham compromisso com a história. Eram apenas textos para orientar os cristãos e passar os ensinamentos de Jesus”, diz Gabriele Cornelli, doutor em ciências da religião da Universidade Metodista de São Paulo. E a orientação oficial sempre foi clara: Judas era o vilão. E ponto final.
Ponto final para os fiéis, é claro. Para os pesquisadores, este é apenas o ponto de partida para dúvidas que nunca foram respondidas. Algumas delas: assim como os outros 11 apóstolos, Judas também teve um grupo de seguidores? Quem eram eles? Há algum legado seu para o cristianismo? Qual foi a relação dele com Jesus? Judas foi mesmo o vilão pintado pela Bíblia? As respostas, como boa parte da história do nascimento do cristianismo, passam mais por hipóteses que por fatos comprovados. Acredita-se, por exemplo, que Judas era uma espécie de outsider entre os seguidores mais próximos de Jesus. Seu sobrenome, Iscariotes, provavelmente é uma indicação da cidade em que ele nasceu: Cariotes, ou Kerioth, ou algo bem próximo a isso – a vila nunca foi localizada com precisão. Sabe-se que o lugarejo ficava perto de Hebron, uma importante área urbana no sul da Judéia. Mas que estava a cerca de 5 dias de viagem da Galiléia, região que abrigava o coração da religião que nascia, onde viviam Jesus e seus outros 11 apóstolos (veja mapa no quadro acima).
E o que isso quer dizer? Que Judas pode ter sido uma figura bastante importante para Jesus. Caberia a ele levar as pregações aos habitantes da Judéia. E isso não era pouco. Vivendo no então principal centro político e econômico de onde hoje fica Israel, os habitantes da região acreditavam ser intelectualmente superiores aos moradores da Galiléia, considerados rústicos e atrasados, quase caipiras. O fato de Judas, um local, falar bem de Jesus pode ter ajudado a abrir as portas da região para o líder forasteiro. “A existência de um Evangelho de Judas leva a crer que ele teve seguidores e nos faz supor que ele tinha forte influência na Judéia”, diz Emmel.
Para entender como Judas podia ter uma “área de influência” é preciso conhecer a estrutura do grupo de seguidores que Jesus tinha ao seu redor. Eles estavam divididos em 3 círculos. No mais distante, ficavam os ouvintes. Eles estavam em todo o território judaico e não seguiam Jesus, mas eram simpáticos às suas pregações. No segundo grupo estavam os discípulos, cerca de 70 pessoas que seguiam o mestre, ouviam seus discursos, anunciavam sua chegada nas cidades, faziam algumas pregações em seu nome, mas não tinham compromisso com Jesus. Foi desse grupo que ele escolheu 12 homens a quem chamou de apóstolos (mensageiros, em grego). Eles formavam o terceiro grupo e eram os mais fiéis. Faziam parte desse núcleo central os irmãos Pedro e André, Tiago e João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, outro Tiago (que era primo de Jesus), Judas Tadeu, Simão e Judas Iscariotes. “Jesus e os apóstolos tinham uma relação de profundo respeito e amizade”, diz o historiador da religião João de Araújo.
Nesse grupo, alguns tinham papéis definidos. Segundo a Bíblia, cabia a Judas a administração do dinheiro recolhido durante as pregações – uma função que sugere a confiança de Jesus (mas que também pode nunca ter existido, sendo acrescentada apenas para reforçar sua afeição ao dinheiro). A verba arrecadada cobria o custo das viagens. “Jesus foi um líder itinerante”, diz Cornelli.
Na ausência do líder, seus seguidores trabalhavam individualmente na busca por fiéis. “Jesus tinha muita clareza do que estava fazendo. Ele organizou células no território judaico e compôs uma estrutura que deu sustentabilidade ao seu poder. Isso explica por que o cristianismo sobreviveu mesmo depois de sua morte”, afirma o historiador André Chevitarese, professor de história antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assim, é muito provável que cada um dos apóstolos tivesse um grupo próprio de seguidores. Afinal, apesar de falarem em nome de Jesus, eram eles que entravam em contato direto com as pessoas comuns. Davam conselhos, pregavam, supostamente operavam milagres. E, obviamente, faziam isso a seu modo: quem ouvia Pedro tinha uma visão diferente da dos seguidores de João ou Tomé sobre os ensinamentos de Cristo.
Mais tarde, essas peregrinações individuais serviriam como a semente que germinaria diversos cristianismos diferentes nos séculos 1 e 2 d.C. – é isso mesmo que você leu, diversos cristianismos. Antes, porém, a nova religião precisaria assistir a seu episódio mais emblemático.
A traição
Judas, a Bíblia manda dizer, teve papel central na prisão de Jesus. Ele foi o alcagüete, o X-9, o ganso, o dedo-duro, enfim, o judas da história. Levou os soldados romanos ao jardim do Getsêmani, onde alguns apóstolos e seguidores estavam reunidos e, à frente dos guardas, deu o famoso beijo que identificou o líder do grupo. Resumindo, Judas traiu Jesus. Simples assim. Essa é a história conhecida por todos. Ou pelo menos era, até os pesquisadores da Fundação Mecenas traduzirem o Evangelho de Judas.
Em 26 páginas, o documento narra os episódios ocorridos durante a semana que antecede a Páscoa judaica no ano de 33 d.C. (os dias imediatamente anteriores à prisão de Jesus) e mostra uma versão completamente diferente da que tínhamos acesso até hoje. No relato, Judas é descrito como o discípulo mais próximo de Jesus, o único capaz de compreender a essência de seus ensinamentos. A profundidade da relação entre os dois aparece, por exemplo, numa passagem em que Cristo desafia os apóstolos ao zombar do comportamento deles. Rindo, acusa-os de não rezar por vontade própria, mas apenas por acreditarem que assim agradariam a Deus. Enquanto os apóstolos, ofendidos com a bronca levada, “começaram a blasfemar contra Jesus em seus corações” (nas palavras do evangelho), Judas mostra ser o único a entender as palavras do líder. Impressionado, Jesus o chama em particular para dizer: “Se afaste dos outros e eu lhe contarei os mistérios do Reino. Você pode entendê-los, mas vai sofrer por isso”.
E quais foram os segredos revelados? Nos manuscritos, Jesus fala sobre um mundo superior, habitado pelo verdadeiro Deus, um espírito bom “que nunca foi chamado de nenhum nome” e que deu origem a uma linhagem de anjos de onde saiu o criador da Terra. Adorado pelos judeus e citado no Antigo Testamento, este seria um Deus inferior, cuja criação aprisiona o espírito do homem. Para nos salvar e encontrar o Deus bom, precisaríamos buscar nossa porção divina interior e nos libertar desse mundo.
Por fim, Jesus revela que Judas será superior a todos os homens porque ”sacrificará o homem que me veste”. E revela a missão do discípulo: matar a parte física para livrar o mestre de seu corpo, ou seja, do reino inferior que aprisionava o espírito divino de Jesus. Judas cumpre à risca as ordens: imediatamente procura os sacerdotes para denunciar o líder. Pelo serviço, embolsou algum dinheiro – o valor não é especificado. Nesse momento, o evangelho acaba, abruptamente.
A idéia de que Cristo não só sabia de sua morte como permitiu que ela acontecesse não é exatamente uma novidade. Nos textos bíblicos, Jesus avisa pelo menos 3 vezes a seus seguidores que será morto. Aponta, inclusive, a traição por um de seus discípulos. O que o Evangelho de Judas acrescenta a essa história é que Jesus teve um cúmplice para ajudá-lo a cumprir seu destino. “Nesse texto, Judas não é o seguidor mau que trai seu mestre. Ele é o amigo mais próximo, o que o compreendia melhor, que o entregou para as autoridades porque assim Jesus queria”, afirma o historiador Bart Ehrman, professor do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, e integrante da equipe que traduziu o evangelho.
Apresentar Judas como alguém que agiu a serviço de Jesus é uma história bastante diferente das contadas em todas as fontes disponíveis – os evangelhos canônicos, o Atos dos Apóstolos e os textos apócrifos. Mas, antes mesmo da descoberta do novo evangelho, outros textos já passavam longe de pintar Judas como grande vilão da história, ou então como uma pessoa gananciosa e demoníaca. O Evangelho de Marcos, escrito por volta de 65 d.C. e considerado pelos historiadores o mais velho entre os 4 canônicos, cita Judas nominalmente apenas 3 vezes, afirma ser ele o responsável pela traição mas diz que a recompensa em dinheiro foi oferecida pelos sacerdotes.
A partir daí, a imagem de Judas na Bíblia vai se tornando progressivamente má. Mateus, escrito por volta do ano 80 e o segundo mais antigo, atribui a traição à ganância de Judas, dizendo que teria denunciado Jesus em troca das famosas 30 moedas de prata – o preço de um escravo na época. Mas relata seu remorso ao ver que Cristo foi condenado e conta que Judas reconheceu que tinha entregado um justo, devolvendo as moedas e depois se enforcando. Lucas, o seguinte na lista, diz que “Satanás entrou em Judas” e, por isso, ele traiu Cristo. O texto de João, que teria sido escrito no início do século 2, diz que, além de possuído pelo demônio, Judas também era ganancioso e ladrão.
Em textos apócrifos, outras hipóteses são levantadas. Uma delas diz que os primeiros cristãos esperavam que Jesus lutasse com armas contra Roma. Decepcionado com a covardia do mestre, Judas o teria entregado. Outra versão diz que, ao delatar Jesus, Judas pretendia precipitar uma revolta no povo de Jerusalém, que libertaria seu líder e o colocaria no trono. Uma espécie de golpe à Jânio Quadros – só que, enquanto Jânio foi para casa, o erro estratégico de Judas levou seu líder à cruz. Para Craig Evens, estudioso de assuntos bíblicos do Acadia Divinity College, no Canadá, tantas versões distintas sobre o mesmo tema revelam muito sobre a Bíblia. “Um dos evangelhos afirma que Judas agiu por dinheiro, outro não cita motivações, dois falam em ação demoníaca. Creio que essas versões tão distintas deixam claro que os escritores do Novo Testamento não sabiam exatamente quem era Judas Iscariotes.”
Primeiros cristãos
Depois que foi crucificado, a Bíblia conta, Jesus ressuscitou e ordenou aos apóstolos propagar a fé em Deus por toda parte. Se a ressurreição aconteceu ou não é questão de crença religiosa. Mas que os seguidores de Cristo se espalharam pelo mundo, não há dúvida – até porque a perseguição dos sacerdotes judeus fazia de Jerusalém um território para lá de perigoso. Judas Tadeu e Simão seguiram para a Pérsia. João percorreu a Turquia e se instalou em Éfeso, um dos primeiros centros do cristianismo. Pedro viajou para Roma (veja por onde passaram outros apóstolos no mapa da página 63).
Se enquanto Jesus estava vivo cada discípulo já contava a história ao seu modo, depois da crucificação as versões se multiplicaram. Quando os apóstolos morreram sem deixar instruções por escrito, então, já não havia como esclarecer dúvidas. Circulavam centenas de versões para os mesmos fatos. Cristo era divino ou não? Divino por inteiro ou só parcialmente? Quem, afinal de contas, era Deus? Como existia mais de uma resposta para a mesma pergunta, em poucos anos o tronco original do cristianismo – as idéias e relatos de Jesus – se ramificou em diversos galhos. Os ebonitas, por exemplo, pregavam obediência às leis do judaísmo. Os marcionistas diziam que o deus judaico não era o Deus do Novo Testamento. Fala-se que os carpocracianos faziam troca de casais (tudo bem santo e em nome de Deus, é claro). Resultado: na metade do século 1, apenas 20 anos após a morte de Jesus, o cristianismo era formado por diversas correntes, muitas contraditórias entre si. E tinha, pelo menos, 3 dezenas de evangelhos diferentes – os textos que narram a passagem de Cristo pela Terra. Destes, apenas os de Marcos, Mateus, Lucas e João acabaram reconhecidos pela doutrina da Igreja. Os demais, acusados de propagar heresias, jamais foram acolhidos pelas autoridades católicas. Os textos excluídos eram atribuídos a Maria Madalena, Judas, Tomé, Pedro e, agora se sabe, até a Judas. “A maior importância na descoberta desse novo manuscrito é comprovar a existência de uma diversidade de opiniões no cristianismo primitivo”, diz Marvin Meyer, especialista em Bíblia da Universidade Chapman, nos EUA, e coordenador da tradução do Evangelho de Judas.
Como é consenso entre historiadores que os evangelhos não foram escritos pelos discípulos de Jesus que levam seus nomes, mas por seguidores deles, resta a dúvida: quem, afinal, era o tal fã do bad boy da história? “É muito difícil identificar o autor do texto. O máximo que podemos é saber o perfil dele: um cristão simpático ao lado místico da religião”, diz Meyer. E quando fala em “lado místico da religião”, Meyer dá a senha para resolver o mistério. Para ele, o Evangelho de Judas foi redigido em alguma comunidade gnóstica, um desses galhos do cristianismo primitivo. A suposição pode ser confirmada por documentos históricos. Afinal, o próprio Irineu, perto de 180 d.C., identificou os autores do evangelho como gnósticos. Ao contrário do que muitos afirmam, esse não eram um ramo dissidente do cristianismo. Pelo contrário: gnósticos eram bastante influentes nos primeiros séculos após a crucificação, pregando que o homem conseguiria a salvação se conhecesse Deus – gnosis, em grego, significa conhecimento. Lembra-se do motivo pelo qual Jesus disse a Judas que precisava morrer? É exatamente disso que estamos falando.
Gnósticos acreditavam que os homens se libertariam da prisão do corpo quando conhecessem a parcela divina que tinham dentro de si. “Eles diziam que o mundo foi criado por um outro Deus, mau, e que o corpo material era uma prisão do espírito”, afirma o frei franciscano Jacir Freitas de Faria, professor do Instituto São Tomás de Aquino, em Belo Horizonte, e um dos principais estudiosos dos gnósticos no Brasil. Não é à toa, portanto, que o Evangelho de Judas é considerado pelos pesquisadores como fortemente influenciado pelo pensamento gnóstico. “Esse evangelho mostra um modo completamente diferente de entender Deus, o mundo, Cristo, a salvação e a existência humana”, completa. Esse modo reflete o pensamento dos gnósticos.
A dúvida que fica é como um grupo de gnósticos concluiu que o suposto vilão é o verdadeiro mocinho da história. Na Bíblia, há duas versões para o destino de Judas. O Evangelho de Mateus conta que, tomado de remorso, ele devolveu as 30 moedas que havia recebido pela traição e se enforcou. Mas, segundo o Atos dos Apóstolos, Judas comprou um terreno com o dinheiro e, “tombando para a frente, arrebentou-se pelo meio, e todas as entranhas se derramaram”. “As versões da morte de Judas narradas na Bíblia são inconciliáveis, mas são os únicos relatos que temos”, afirma Chevitarese.
Mas, se Judas foi culpado pela traição e morreu tão cedo, como reuniu seguidores para escreverem seu evangelho? O professor Stephen Emmel formula duas hipóteses: ou Judas teve tempo de contar suas conversas com Cristo antes de se matar; ou não morreu tão cedo. “Quem escreveu o texto de Judas pensava que ele era um discípulo muito importante”, diz. “Acreditava que alguns ensinamentos especiais foram transmitidos por Cristo a Judas. E apenas a ele.”
A história oficial
No 1º século do cristianismo, o excesso de versões para as palavras de Jesus não era um problema. Mas, em 178 d.C., o bispo Irineu, de Lyon, resolveu unificar a Igreja. Queria fortalecer o cristianismo e controlar melhor os fiéis. Determinou, então, que apenas 4 evangelhos contavam a história verdadeira do filho de Deus e, portanto, deveriam ser os únicos seguidos pelos cristãos. O de Judas foi descartado.
Os critérios que orientaram a escolha de Irineu foram subjetivos. O primeiro, dizem historiadores, foi a facilidade de compreensão, já que os textos precisariam ser lidos em voz alta para os fiéis – afinal, a maioria era analfabeta. O segundo ponto era a idade: os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João estavam entre os mais antigos, escritos entre 65 e 95 d.C. O terceiro argumento foi o número 4, considerado especial por Irineu – porque havia “4 ventos e 4 direções (norte, sul, leste e oeste)”, como escreveu o próprio bispo. E, por óbvia conclusão, 4 evangelhos. Deu para entender a lógica?
É claro, a história relatada no evangelho também foi levada em conta. Irineu representava o cristianismo ocidental, ligado aos legados do apóstolo Pedro, que pregou em Roma. Ele não aceitava – na verdade, rejeitava – os pensamentos gnósticos. “Os gnósticos diziam que a salvação vinha pelo autoconhecimento. Assim, acreditavam que não precisavam freqüentar cultos e igrejas ou ter um padre como intermediário. Também afirmavam que a morte de Cristo na cruz serviu para libertá-lo da prisão que era seu corpo, mas seu sofrimento não poderia salvar os homens que aderissem à Igreja Católica”, diz Jacir de Faria. Na prática, a pregação gnóstica não era nada interessante para um bispo que tinha como objetivo fortalecer a Igreja. Evangelhos como o de Judas, Tomé e até o de Pedro receberam o carimbo de heréticos.
“Os líderes da Igreja queriam que o Novo Testamento fosse uma guia do que os fiéis deveriam aprender. Por isso, os 4 evangelhos oficiais são livros óbvios, claros. Os textos proibidos, não. Eles são místicos, inesperados, paradoxais, mais próximos à cabala judaica. São para iniciados que querem se aprofundar na fé”, diz Elaine Pagels.
Ao fazer suas escolhas, Irineu selou o destino de Judas. Um exemplo: por que Pedro, que negou Cristo 3 vezes, jamais teve sua virtude colocada em dúvida e não entrou para a história como traidor? “Pedro, chefe da Igreja em Roma, tinha de ser o herói. A Igreja elegeu Judas como vilão já que um dos 12 deveria trair”, diz o historiador Chevitarese.
“Judas serve como exemplo para amedrontar os cristãos que não seguirem o Evangelho”, comenta Jacir. “O cristianismo precisa desses arquétipos. Destruí-los é mexer nas bases que o sustentam.” Foi mais seguro para Irineu, portanto, ficar com os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João, que seguiam linhas parecidas e não feriam os princípios de que Pedro era o apóstolo mais próximo de Cristo e Judas, o traidor. (Para quem ficou curioso ao perceber que Marcos e Lucas não integravam a lista original de apóstolos, o esclarecimento: Marcos era sobrinho de Pedro. Lucas, amigo de Paulo, que se tornou apóstolo após a crucificação, segundo ele, “por vontade de Deus”.)
Não chega a ser surpresa, portanto, que a Igreja tenha recebido com frieza a descoberta dos manuscritos. Ainda que pesquisadores como Marvin Meyer, coordenador dos trabalhos de tradução, defendam uma “reavaliação da figura histórica de Judas Iscariotes”, o Vaticano veio a público negar a benção ao novo evangelho. Walter Brandmuller, presidente do Comitê para Ciência Histórica do Vaticano, chamou o texto de “produto de fantasia religiosa”. E, na primeira missa após a divulgação do evangelho, o próprio papa Bento 16 fez questão de apresentar sua opinião sobre o tema. Não aliviou nas palavras. “O que deixa o homem imundo? A rejeição ao amor, o não querer ser amado e o não amar. É a soberba de acreditar que não precisa de purificação, a rejeição da vontade salvadora de Deus. Em Judas, vemos a natureza dessa negação com mais clareza. Ele valorizou Jesus segundo os critérios do poder e do sucesso”, disse.
“A Igreja nunca vai aceitar a versão que absolve Judas da traição. Na visão dela, o pecado de Judas existiu e se deve ao mau uso de sua liberdade. Afinal, ele tinha livre-arbítrio para escolher não entregar Cristo. Não foi um ato inevitável, nem um fatalismo”, diz o historiador da religião João de Araújo. O frei Jair de Faria concorda. “Judas somos todos nós quando traímos o projeto do Evangelho. O recado é claro: na dúvida, melhor não trair.” Judas que o diga.
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