MOMENTO COM DEUS

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Viciada em crack diz que já fez sexo com mil homens sem camisinha

Escravas do crack: elas mantêm o seu vício usando o próprio corpo como moeda

Christian Tragni
Daniela: “Na fissura, eu fazia de tudo. O cara pagava R$5 pelo sexo”
Fazia três dias que eu estava na rua, só fumando crack. Não sentia fome, então não comia. Carregava uma barriga de nove meses. A filha era do meu marido, com quem eu terminava e reatava na tentativa de retomar minha vida.

Uma hora percebi que ela ia nascer. Voltei para casa da minha mãe. Pedia para entrar, mas ela não abria a porta. Não acreditava no que eu dizia, achava que eu estava louca de crack, que queria enganá-la, dar escândalo. E as dores aumentando. E ela se recusando a abrir a porta. Quando finalmente se convenceu a abrir, a cabeça da minha filha estava quase para fora. A menina nasceu no chão da cozinha, sem ajuda de ninguém. Minha mãe a aparou e chamou a polícia, que nos levou a um hospital. Isso faz dois anos e agora estou passando por tudo isso de novo. É um filme de terror.” Daniela*, 27 anos, enuncia os fatos com objetividade, quase frieza.
É como se a narrativa não pertencesse à vida dela. Enquanto encaixa uma frase em outra, com português perfeito, deixa entrever sua instrução. Completou o ensino médio, fez cursos de informática, culinária, cabeleireira, sonhou em fazer faculdade de moda. Casou-se, teve três filhos, uma loja de materiais de informática, casa própria, carro do ano, renda familiar de mais de R$5 mil por mês. No rosto bonito, emoldurado pelo cabelo cuidadosamente despenteado, ao estilo black power, ela exibe a marca da sua história. Um buraco do tamanho de uma moe­da de dez centavos no meio da testa, consequência de um tombo de moto sofrido quando estava drogada, e alguns dentes quebrados no sorriso branco e largo, por surra ou falta de higiene adequada, fazem com que se lembre todos os dias que ela abandonou tudo para ficar com o crack.
A relação de Daniela com o crack começou há quatro anos, quando uma amiga ofereceu a ela uma pedra, numa festa. Até então, seu contato com drogas era meramente recreativo e controlado. Ela fumava maconha de vez em quando, sempre escondida, porque o marido não gostava. Um mês depois de provar crack, Daniela já estava compulsiva. Ficou agressiva com os filhos (o mais velho não chegava aos 10 anos de idade), distante do marido. Planejava desviar os R$80 semanais da feira para comprar pedra. Acabou saindo de casa. Foi perambular pelas ruas. Perdeu o controle sobre sua história. “A droga deforma o caráter”, afirma. Sem nunca ter tido passagem pela polícia, começou a roubar. “Mas eu era muito ruim nisso, ia acabar morrendo. Me prostituir foi a saída pra não depender de ninguém e conseguir a droga.” Ela, que tinha tido apenas quatro parceiros sexuais, contabiliza agora pelo menos 250 homens para quem vendeu o corpo nos últimos três anos. “Eu fazia de tudo, dependendo do cara e da minha fissura. Era dentro do carro, num canto escuro da rua, na casa do cara, no motel. Eu tinha um preço, mas no fim, o cara pagava R$5, R$10, ou pagava em pedra mesmo.” Grávida de cinco meses, de um menino, ela está há pouco mais de um mês abrigada no Amparo Maternal, um alojamento para mulheres em situação vulnerável conveniado à Prefeitura de São Paulo. Ali, ela fica longe da droga. “Mas ainda sinto o gosto da pedra na boca”, diz. Não existe qualquer remédio capaz de ajudá-la a se livrar do vício. Não é a primeira vez que Daniela tenta. Ela já esteve internada em clínicas particulares, custeadas pela família, em duas ocasiões. Mas a cada nova recaída sua situação fica pior. A mãe não fala mais com ela, o marido, que hoje cuida da filha que nasceu na cozinha, a abandonou, as irmãs sentem vergonha dela, os filhos têm medo e saudade — o mais velho dorme abraçado à foto dela. Daniela chora ao rememorar almocinhos de domingo na casa da mãe, ou as festas de aniversário que ganhava na adolescência. É nesses momentos que parece se lembrar de quem é. “Quero jogar fora o rótulo de prostituta e noia. Eu sei que é difícil acreditar, é difícil as pessoas me perdoarem, mas agora quero fazer isso por mim mesma. Estou decidida que o próximo Natal vai ser diferente, longe da biqueira (boca de fumo).”
O ENCONTRO COM A DROGA
O destino de Daniela é um desafio não só para ela. A sociedade e o poder público não sabem como resolver o problema dela e de outras mulheres viciadas em crack. Ninguém consegue precisar quantas são dependentes da droga hoje. Mas sabe-se que o problema aumenta pela disparada do número de mulheres grávidas e doentes que apelam à rede pública de serviços. Quando a droga desembarcou no Brasil, na década de 90, os dependentes costumavam ser jovens, negros e pobres. Os usuários não sobreviviam ao uso por mais de um ano. Morriam pelo efeito da droga ou do entorno violento. O tráfico era bastante limitado, a produção, artesanal. “Mas sabíamos que, tendo efeito mais poderoso do que o da cocaína, o crack não ficaria restrito a uma classe social mais baixa”, afirma a toxicologista Solange Nappo, que há 20 anos estuda a dinâmica do uso de crack no Brasil e publicou seus estudos no recém­-lançado O Tratamento do Usuá­rio de Crack (Artmed). “Para o usuá­rio, não existe ‘droga de rico’ e ‘droga de pobre’. Existe a droga que dá mais ou menos prazer.” O consumo da pedra se expandiu nos anos 2000. Os traficantes temiam vender em larga escala uma droga que matava os clientes em pouco tempo. Além de perderem a clientela, as bocas de fumo ainda tinham que arcar com as dívidas que esses homens deixavam. O crime organizado percebeu que a lucratividade do crack aumentaria se os traficantes conseguissem alongar a sobrevida do usuário. A mulher se mostrou um bom negócio. “Incluí-las na cultura do crack foi uma estratégia genial para eles”, afirma Solange. “Ela passou a ser a melhor cliente do tráfico, porque criou sua própria estratégia de obter dinheiro e de sustentar o vício dos homens, que agora vivem mais. Foi a pior coisa que poderia ter acontecido para a sociedade.”
A PROSTITUIÇÃO
Assim como Daniela, outras mulheres perceberam rápido sua falta de destreza para o roubo. Elas não assustavam ninguém, não tinham força para machucar, não sabiam atirar. Quando faziam parte de uma quadrilha, invariavelmente, recebiam menos do que os homens. Nunca conseguiam comprar droga fiado. “Com a ajuda do traficante, que quase sempre é o primeiro cliente, elas descobriram uma carreira solo: se prostituir”, diz Solange. Nos últimos anos, ela acompanhou a trajetória de 76 usuárias — de analfabetas àquelas com curso superior, de miseráveis a abastadas. Descobriu que quase 90% delas vendiam o corpo para comprar­ crack­. “Não importa a classe social, a religião, a origem, todas agem da mesma maneira. Ao se prostituir, sempre têm dinheiro para pagar o traficante. Se ela precisar de 30 homens num dia para pagar a dívida na boca, vai transar com todos.” Daniela confirma: “Lá na boca onde eu comprava, uma vez, me chamaram de vagabunda. Pedi para falar com o dono da boca. Ele veio e deu uma dura nos funcionários, disse que as mulheres são as melhores clientes, boas pagadoras e que eu nunca ficava devendo nada ali.”
A provedora O dinheiro dos programas feitos pelas mulheres resolveu também o problema dos homens. O sorriso largo, o corpo esguio, os seios empinados sustentaram não só a fome de pedra de Amanda*, 22 anos, como a do namorado dela, que a apresentou ao crack quando ela ainda era adolescente. Ele percebeu que na rua ela trazia muito mais dinheiro do que ele podia conseguir com os roubos que praticava. Passou a explorá-la sexualmente. Comprava roupas, eletrodomésticos com o dinheiro que Amanda ganhava dos clientes. Ela trocou de namorado, mas todos os demais companheiros se comportavam de maneira semelhante ao primeiro. Em sete anos de vício, o crack a levou a Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. “Eu ia aonde me pagavam mais pelo programa e a droga era melhor. Cheguei a transar com mais de mil homens”, diz Amanda. “Podia ter ganhado muito dinheiro, mas gastei tudo com droga para mim e para os outros.” Solange Nappo afirma que por trás de uma mulher usuária de crack quase sempre há um homem, um companheiro. “Esse sujeito deixa de se expor, se resguarda, e a mulher passa à linha de frente no crack. É ela a provedora do casal”, diz.
Christian Tragni
Fonte: Marie Claire

Nenhum comentário:

Postar um comentário