A questão do derramamento de óleo saiu da mídia, mas seus capítulos ainda continuam a se desdobrar para as comunidades tradicionais do litoral. Confira o relato do antropólogo Lucas Pereira sobre os acontecimentos no Delta do Parnaíba e as sequelas e riscos que os pescadores e pescadoras artesanais enfrentam!
Por Lucas Coelho Pereira
Os kits oferecidos pela marinha brasileira eram insuficientes. A quantidade mal servia para proteger os poucos militares destacados para auxiliar na limpeza. Vendo o óleo chegar e temerosos de terem grandes áreas de manguezais atingidas, os moradores da Reserva Extrativista do Delta do Parnaíba (Araioses – MA) se voluntariaram. Mas sem a proteção necessária, nada poderiam fazer. Com a pressa de quem encara o perigo, Betinha – liderança comunitária e agente de saúde da Resex – fez uma campanha para conseguir recursos.
A iniciativa deslanchou. Com postos de arrecadação na Universidade Federal do Delta do Parnaíba e na sede do ICMBIo, amanhecemos na segunda feira (21/11/2019) com uma grande doação de luvas, pás, sacos plásticos, e máscaras. Contudo, já havia uma ação de retirada do petróleo na praia do Feijão Bravo para a manhã do dia seguinte e os equipamentos não chegariam à ilha em tempo. Leandro Aires, responsável por arregimentar o pessoal nas comunidades, teve que diminuir o número de participantes na ação.
Dias de trabalho na praia do Feijão Bravo
Leandro é técnico do Torto Futebol Clube, irmão de Betinha e atual presidente da Amar Delta. Foi com ele que peguei o quadriciclo do Torto para a comunidade de Caiçaras, de onde partiríamos para a praia do Feijão Bravo – por água. Filho, comprador de caranguejos da Caiçara, esperava-nos com duas canoas e mais alguns companheiros/as. Demoramos sair. O tempo de nossos mantimentos chegarem. Água, refrigerantes, mangas, frango frito com farinha e gasolina para os motores. Tudo financiado pelas doações recebidas até então.
Paramos há algumas dunas da praia. Sentíamos sede. Enquanto bebíamos, Leandro desempacotava os kits e dava algumas instruções para o dia de trabalho. “Olha, gente, vocês têm que ter muito cuidado ao retirar as luvas pra beber água e pegar nas coisas”. Ele então nos ensinou a tirar e colocá-las corretamente para não nos contaminarmos. “A gente ainda não sabe direito o que esse óleo causa na gente… Mas muita gente já apresentou coceira ao entrar em contato… A gente não sabe também se algum de vocês aqui tem alergia ao óleo…”. Leandro relatou o caso de um colega que começou a passar mal logo ao chegar na praia contaminada e teve de ser retirado às pressas. Se sabíamos quase nada de onde o petróleo vinha, sabíamos menos ainda o que ele poderia causar aos nossos corpos.
Os equipamentos de proteção – macacões e luvas – haviam sido disponibilizados pela marinha em ações anteriores. Assim como a “mão amiga” recebida pelas forças armadas até então, esses itens eram praticamente nada, menos de dez.
No início, apesar da grande quantidade, o petróleo estava disperso. Formava pequenas manchas que deveriam ser ciscadas, unidas e peneiradas. Ocorre que não tínhamos peneiras e tampouco ciscadores nesse dia. Juntávamos o petróleo com as mãos. Alguns colegas improvisaram ciscadores com pedaços de plástico, madeira e até caçambas de caminhãozinho de brinquedo. Lixo devolvido pelo mar. Caminhávamos de cabeça baixa e tronco semi curvado, vasculhando a areia com os olhos. O sol ardia nas costas. Havia quem tivesse só de camisa e bermuda, como eu. O macacão, feito de um plástico aveludado, lembrava a textura de fraldas descartáveis. Eles também esquentavam a pele de quem os vestia.
Com o pingo do meio dia se aproximando, a coleta ficava mais difícil. O petróleo – duro e consistente no início da manhã – começava a se desmanchar, requeria maior rapidez no seu manuseio. Agachados ao chão, os grãos de areia entravam nos olhos e pareciam cortar nossa pele quando lançados pelo vento. A medida que caminhávamos, as manchas aumentavam e mostravam-se maiores. Era desesperador tentar dar conta de um trabalho que parecia não ter fim.
Na manhã seguinte houve uma nova ação para a retirada do óleo e nos dias posteriores também. Limpar as praias é lidar com o movimento das marés. Elas crescem e vazam, cobrem e descobrem o óleo, jogam-no pra mais longe. Tínhamos que considerar isso e, também por isso, nosso ritmo era intenso. “Esse óleo é da maré passada e a gente tá com medo porque tá vindo aí uma maré grande. A gente tá com medo de [a maré] banhar e estar levando pro estuário”. Leandro temia a próxima maré de lua nova, uma das maiores do mês, e também daquele verão. Áreas mais distantes de mangue e de terra seriam alcançadas.
Como os equipamentos já haviam chegado, mais pessoas puderam ajudar, inclusive boa parte dos caranguejeiros do Torto. Nos dias seguintes, enquanto continuávamos a retirada de petróleo na praia do Feijão Bravo, Bruto, um colega caranguejeiro, me falou: “cara, as coisas aqui já são difíceis pra nós, se uma peste dessa chega no mangue vai ser pior ainda”.
A vida que vem da lama
O caranguejo é de vital importância no Delta do Parnaíba. É a partir das relações com esse bicho que homens, mulheres e crianças se iniciam na lida com os mangues. Seja do ato mais basilar de caminhar pelas raízes até as complexas práticas de conhecimento, captura e preparo envolvendo esse crustáceo. No período de 2008 a 2010, estima-se que a região do Delta produziu cerca de 8.500 toneladas de caranguejo (FARIAS et. al., 2015).
Diante desse cenário é redundante dizer que a iminência da chegada de óleo nos manguezais do Delta era prenúncio de mortes de toda espécie. Os manguezais são a base de diversos ecossistemas costeiros e marinhos. Lá – além dos humanos – alimentam-se, peixes, crustáceos, fungos, bactérias e uma infinidade de aves. Não por acaso caranguejeiros e outros pesquisadores consideram os manguezais uma espécie de berçário. Pequenas porções de mangue, sobretudo situadas em regiões mais costeiras, chegaram a ser atingidas.
“Aqui é uma preocupação pra gente porque aqui fica uma área muito próxima dos manguezais […] A gente necessita dos manguezais pra buscar o sustento, a cata do caranguejo e o peixe também”. Falas como essa, dita por Filho, antigo caranguejeiro e hoje comprador desse crustáceo, eram e são uma constante. Rita, jovem comunitária da Resex, também moradora da comunidade Caiçara, falou-me das preocupações de seu pai: “meu pai já está com muito medo de não poder pegar mais. Ele vai pro mangue com receio de ter óleo. Porque sem o caranguejo a gente simplesmente não é nada.”
Na comunidade Caiçaras, soube que peixes, caranguejos e outros crustáceos deixaram de ser vendidos fora pelo risco de contaminação. No centro de Araioses (Conceição) as pessoas se negavam a comprar. A única saída era a venda do pescado obtido em certos trechos do rio e, sobretudo, na lagoa da região. O impacto econômico do óleo é inegável. Até mesmo comunidades pesqueiras não atingidas diretamente tiveram perdas. As marisqueiras de Ilha Grande – PI, por exemplo, há mais de três meses vêem suas vendas caírem vertiginosamente e sequer receberam o seguro liberado pelo governo para as áreas atingidas. Elas, assim como vários outros grupos do delta, apesar de trabalharem no estuário – encruzilhada de águas doces e salgadas – são cadastradas oficialmente como pescadoras de rios e lagoas. Dos 78 pescadores contemplados com o benefício no Piauí, mais de 60 eram exclusivamente do município de Luiz Correia.
O prejuízo financeiro e a violência burocrática do estado ao definir quem seria beneficiado ou não são apenas partes da história desse crime.
Vivendo em um mundo contaminado
“Esse óleo, que nós chamamos petróleo cru, responsabilizamos o governo federal… Porque depois de 40 dias é que veio acionar o plano de contingência. Como ele não sabe de onde vem o petróleo?”, perguntou dona Celeste, coordenação regional do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil. Sua dúvida-desconfiança com relação à atuação do governo veio acompanhada de outra: o que será feito de agora em diante? A grande preocupação é com a saúde de quem, direta ou indiretamente, foi atingida pelo petróleo. “Essas pessoas que tem um contato direto com o óleo cru, elas precisam fazer um exame! E não está sendo visto pelos órgãos de saúde do nosso estado qual o grau de contaminação”, completou. O petróleo cru é agora uma arma silenciosa de destruição e conta com um aliado poderosíssimo: o descaso do governo federal para com a vida dos pescadores.
Luciano Galeno é presidente da Comissão Ilha Ativa, uma ONG criada em 2006 com atuação na Área de Proteção Ambiental do Delta do Parnaíba – Piauí, Ceará e Maranhão. Ele me contou do trabalho incansável da Comissão após a chegada das primeiras manchas de óleo no Delta, registradas no início de setembro. Embora se tenha notícia de petróleo nas águas da região ainda no final do mês anterior: “pelo dia 22 de agosto já tinha óleo. Avistamos óleo lá na barrinha. Avistando lá na praia do caju… Na maré alta, a minha colega, que é pescadora, me convidou pra uma pescaria e eu não podia. Ela foi, o óleo já estava lá!”, alertou-me dona Celeste.
Ela, Luciano e todos os povos costeiros e ribeirinhos sabem que as consequências do petróleo não acabam com a limpeza das praias: “a substância é extremamente tóxica e – conforme a temperatura – ela vai sendo dissolvida no ar, a pele absorve, a pessoa absorve na respiração…”. E os efeitos disso, destacou Luciano, podem ser sentidos a longo prazo. Caso não haja um monitoramento da saúde dos pescadores e de quem mais entrou em contato com o óleo, as pessoas podem apresentar doenças e sequer saberem que carregam no corpo complicações advindas da contaminação por petróleo.
Pescadores, marisqueiras e caranguejeiros seguem sem grandes informações do Estado a respeito do que ocorreu de fato, do que será feito de agora em diante e do real teor de contaminação dos seus pescados (e dos próprios corpos).
Comunidades se reúnem com órgãos ambientais
Algumas informações nesse sentido, contudo, foram compartilhadas na última reunião da Resex e da Área de Proteção Ambiental do Delta do Parnaíba. De acordo com a Coordenação Regional 5 do ICMBio, foram coletadas mais de 7 toneladas de resíduos nas praias do Piauí e cerca de 8 toneladas nas ilhas do Delta. Conforme a Marinha, o número de material oleoso coletado no Piauí foi de mais de 10 toneladas e, no maranhão, mais de 15. Dados do IBAMA somaram-se a esses para falar em 10 toneladas de resíduos no Piauí. Apesar da discrepância entre os números apresentados, as informações são alarmantes. Leandro Aires, ao final das apresentações, comentou: “nós não temos grande preocupação com números, nossa preocupação é com a praia limpa. E eu arrisco dizer que mais de 50% desse óleo do Maranhão foi coletado só por voluntários”. Isso não pode ser romantizado, como outros antes de mim já falaram. Mas acrescento: deve ser mesmo é catastrofizado! As pessoas foram obrigadas a correr riscos que não deveriam. Quem ficaria de braços cruzados ao ver o próprio mundo se despedaçando?
Pescadores presentes pediram ainda informações sobre a real contaminação de seus pescados. Lembro a fala de dona Maria Luíza, vice presidente da associação de marisqueiras de Ilha Grande: “o que a gente quer é um parecer dizendo se nosso marisco está contaminado ou não! Alguma coisa assim! Porque o pessoal não vai querer comprar.”. O comandante da Marinha, disse a ela que isso não era da competência deles, que dona Luíza procurasse o Ministério de Aquicultura, Pecuária e Abastecimento. A clássica saída pela tangente que alguns agentes do estado sempre têm na manga: “procure o departamento responsável”.
Parte das perguntas dos pescadores e pescadoras continuam sem respostas. De modo geral, foi dito que a fase atual era de monitoramento com relação aos danos causados pelo petróleo, mas que a população poderia ficar tranqüila. Até agora, contudo, nenhuma pesquisa oficial a respeito do grau de contaminação das águas, das areias e das espécies presentes no Delta foi divulgada. A desinformação abunda, assim como as substâncias tóxicas dissolvidas pelo petróleo na água.
Preocupada com a situação, a professora Edna Cunha, do curso de Engenharia de Pesca da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, voluntariou-se para fazer uma análise em espécies de peixes e camarões capturados no igarapé do Guirindó. O material foi fornecido pela ONG Comissão Ilha Ativa. Na análise macroscópica dos peixes, nada foi encontrado. O mesmo não ocorreu com os camarões, que apresentaram fragmentos de material oleado no sistema respiratório e no conteúdo estomacal.
Conforme ressaltado pela professora, os resultados ainda são preliminares e passarão por posteriores análises químicas. É preciso saber, por exemplo, a quantidade de hidrocarbonetos presentes na musculatura dos peixes. Tal substância, juntamente com enxofre, ácidos graxos e metais pesados, é apenas parte dos elementos presentes na composição do petróleo. Os hidrocarbonetos podem se dissolver na água e possuem um alto tempo de degeneração. Os camarões contaminados são um alerta importantíssimo. Eles são a base de toda uma cadeia alimentar.
“É o tempo de a gente se voltar mesmo pra usar os organismos pra acompanhar o efeito desse derramamento de óleo. Passada essa etapa de remoção visual, na verdade, não houve a remoção do poluente. Os organismos é que devem ser monitorados para esse acompanhamento. Usando também outros grupos e um plano amostral mais planejado”, recomendou a professora Edna Cunha.
Hoje, sem grandes quantidades de petróleo cru chegando ao litoral nordestino, os ânimos da comoção nacional esfriaram. As praias foram limpas (mesmo que parcialmente) e pouco a pouco a vida parece retomar sua normalidade. Mas como seguir em meio a um ambiente potencialmente contaminado? Pescadores e pescadoras seguem aguardando respostas e providências mais efetivas. O clima de tensão, raiva e cansaço daqueles dias era terrível. Isso não terminou. O que se desenha agora é um futuro de medo, incertezas e possíveis adoecimentos crônicos.
Referência
FARIAS, A. C. S. et al. Cadeia produtiva da pesca no interior do Delta do Parnaíba e área marinha adjacente. Fortaleza: Editora RDS, 2015.
Fotos: Lucas Coelho Pereira
Lucas Coelho Pereira é cientista social e antropólogo. Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/DAN/UnB). Trabalha com relações étnico-raciais em ambientes urbanos junto a povos e comunidades tradicionais, ecologia política e interações entre humanos, plantas e animais. Atualmente vive na cidade de Parnaíba, onde desenvolve pesquisa junto a pescadores e caranguejeiros do Delta (Piauí e Maranhão
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